sábado, 20 de março de 2010

Estendais de Alfama

As janelas,
Abertas namoram o Tejo
Entreabertas suspiram de manjerico em manjerico o desejo
Fechadas anseiam como quem ama
Todas elas arranjadas pelas ruas de Alfama.
Usam ao pescoço um colar,
Colar enfeitado, estendal recheado.
Cada uma com um mais arranjado
Parece disputa e concurso sem vencedor premiado.
Estendais de todos os tamanhos,
Molas coloridas,
Roupas estendidas,
Estendais...
Estendem saias, camisolas, calças e aventais,
Muitas meias e cuecas
Todos os tamanhos e todas as cores...
Brancos, escuros, coloridos...
Toda a roupa molhada de mãos dadas com as molas
Secam ao vento em Lisboa.
Dança com o vento em coreografia desalinhada
De mãos dadas e de mola em mola apertadas.
Molas de todas as cores
Que parecem guardar sabores
Sabe a morango a vermelha,
E com a camisola dança um tango.
A verde sabe a maça
E segura uma meia de tamanho anã,
A azul,como a água, quase que me mata a sede
E segura uma espécie de rede...
É um xaile e ambos dançam como se estivessem num baile.
A mola amarela, pelo sol já descolorada,
Deve saber a banana.
Pesados devem ser os lençóis que segura.
As janelas deslumbram o Tejo
Na ânsia de um olhar, de um pedido de namoro...
A roupa do estendal observa, sorri, dança e conversa.
Gosta de ouvir a tagarelice das vizinhas,
As risadas das crianças que no largo jogam à bola.
O sino da Igreja começa a tocar,
Os cães na rua começam a ladrar,
E o gato que espreita mia sem parar...
Cheiram o ar de uma Lisboa que amanhece,
Cheiram o ar que a roupa vai secar...
A roupa do estendal vê os turistas a passear,
Quase que lhes sorri a cada barulho inerente ao fotografar...
A roupa olha para o Tejo ansiosa por mergulhar,
Talvez os seus remotos passados fossem lavados lá...
Ela não.
A roupa já não é lavada à mão.
Desgostosa roupa que não gosta da rapidez com que a lavam
Banho colectivo num buraco escuro,
Rodopiam, rodopiam e rodopiam
Trambolhão em trambolhão...
Até alguém carregar num botão.
Contudo, felizes estão,
Ainda respiram no estendal. Menos mal!
Ao menos ainda secam com a brisa de um Tejo que as olha, mesmo que desatento.
O calção já preveniu a camisa.
Algumas outras roupas são estendidas por toda a cidade dentro de casa.
Outras nem estendidas são. Secam logo após a lavagem.
Como? Pergunta assustada a camisa.
No mesmo buraco escuro, secagem colectiva.
É verdade. Garante o calção.
Que grande confusão, desabafa a camisa.
A roupa de Alfama gosta de enfeitar o colar das janelas,
De falar às vizinhas,
De apanhar sol,
De respirar Lisboa,
Gosta deste descanso,
Gosta de viver a observar.
Antes de aqui chegar, vivem Lisboa à pressa.
Passa rapidamente por toda a gente,
Triste por não ver nada.
Não observa e observar sabe-lhe tão bem.
Sabe sempre a batido de vários sabores
Saborear a namorar...bem devagar.
A roupa de Alfama vive Lisboa devagar.
Quem passa depressa por Lisboa não é lisboeta.
Lisboa não gosta de ser atravessada,
Gosta que a vivam,
E a roupa do estendal sabe disso...

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