Nos anos 40 do século passado, quando o salazarismo o afastou pela primeira vez do ensino universitário, Vitorino Magalhães Godinho rumou a Paris, para trabalhar na École Pratique des Hautes Études, onde veio a colaborar com os grandes nomes associados à Revue des Annales, que vinham promovendo uma renovação da historiografia, abrindo-a aos contributos das restantes ciências sociais. Conta-se que Fernand Braudel, impressionado com os conhecimentos do jovem português, que fora recomendado pelo então director do Instituto Francês em Lisboa, Pierre Hourcade, terá confessado: "Não há nada que se lhe possa ensinar".
O historiador, que morreu na terça-feira à noite em Lisboa, a dois meses de completar 93 anos, "tinha um grande prestígio nos meios académicos franceses", confirma o ensaísta Eduardo Lourenço, que o considera, a par do italiano Ruggero Romano, um dos dois historiadores "estrangeiros" mais importantes no grupo dos Annales.
A sua cultura enciclopédica é atestada por todos os que o conheceram, que também são unânimes em reconhecer que não era um homem de trato fácil. "Havia nele qualquer coisa de jansenista, era extremamente severo nos seus juízos sobre o comportamento das pessoas", diz Lourenço. Uma intransigência que o ex-ministro da Educação David Justino, colaborador de Godinho ao longo de mais de três décadas, atribui ao facto de este ter sido "um homem de carácter" e "um exemplo de ética republicana", alguém que "não tolerava desvios cívicos". Manuel Loff, um historiador da nova geração que vê em Godinho "o primeiro historiador moderno português", sugere, como ilustração caricatural da sua proverbial intransigência, que este "era do género de ler um livro e dizer ao autor: "Você é capaz de citar fulano? Nunca mais falo consigo"".
Com uma obra vastíssima e multifacetada, e na qual continuou a trabalhar quase até à sua última semana de vida, marcou de forma muito particular a historiografia da expansão portuguesa nos séculos XV e XVI, um tópico que começa a investigar ainda antes de partir para França e acerca do qual publicou diversos estudos, coroados pela monumental obra em vários volumes intitulada Os Descobrimentos e a Economia Mundial, desenvolvimento da sua tese de doutoramento, arguida por Braudel. Revisitando as fontes documentais, estudando as civilizações africanas no período que antecedeu a chegada dos portugueses e cruzando contributos da Geografia, da Economia e da Sociologia, Magalhães Godinho integra os Descobrimentos no pano de fundo da economia mundial, afastando-se do "viés patriótico", para usar a expressão de Manuel Loff, "que estava ainda muito presente em António Sérgio ou Jaime Cortesão".
David Justino crê que Godinho se antecipou mesmo ao seu mestre Braudel no "modo pioneiro como trabalhou sobre a economia mundializada", tomando como objecto "um mundo estruturado pelo fluxo das mercadorias e pelas rotas culturais". Uma abordagem que deixou teorizada numa célebre entrada do Dicionário de História de Portugal de Joel Serrão, na qual desenvolve o conceito, ainda hoje instrumental, de "complexo histórico-geográfico".
Loff destaca uma outra entrada de Godinho para o mesmo dicionário, esta sobre a "sociedade portuguesa", que considera "uma obra-prima" pelo modo como o autor "desmistifica a existência de uma qualquer forma de construção nacional que tenha sido eficaz antes do século XX", distanciando-se da tese de que haveria uma nação portuguesa desde o século XII, cuja identidade teria tido confirmação em episódios como a crise de 1383-1385 ou a restauração de 1640.
Esta sua aversão aos mitos dificilmente poderia deixar de causar algumas reservas ao hexegeta por excelência das mitologias nacionais, Eduardo Lourenço, que, referindo o esforço de Godinho para limpar a História de qualquer metafísica, ajuiza: "A História era a sua metafísica".
Além do seu papel crucial na Universidade Nova, onde foi professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Magalhães Godinho esforçou-se genuinamente por colaborar na edificação do novo país que a Revolução dos Cravos prometia, desempenhando vários cargos públicos. Foi ministro da Educação e Cultura nos II e III Governos provisórios, liderados por Vasco Gonçalves, mas só aguentou cerca de meio ano. Lourenço observa, com malícia, que, nesses tempos do PREC, "terá percebido que a História é algo que a razão pode não ser capaz de apreender totalmente".
Nos anos 80 ainda foi director da Biblioteca Nacional, mas demitiu-se, queixando-se de interferências do poder político, e voltou à universidade. A sua última intervenção pública foi para se opor ao acordo ortográfico. "Foi ele que me contactou a sugerir que se criasse um movimento cívico contra o acordo", conta Vasco Graça-Moura, "e é um dos principais co-redactores da petição que lançámos".
O historiador, que morreu na terça-feira à noite em Lisboa, a dois meses de completar 93 anos, "tinha um grande prestígio nos meios académicos franceses", confirma o ensaísta Eduardo Lourenço, que o considera, a par do italiano Ruggero Romano, um dos dois historiadores "estrangeiros" mais importantes no grupo dos Annales.
A sua cultura enciclopédica é atestada por todos os que o conheceram, que também são unânimes em reconhecer que não era um homem de trato fácil. "Havia nele qualquer coisa de jansenista, era extremamente severo nos seus juízos sobre o comportamento das pessoas", diz Lourenço. Uma intransigência que o ex-ministro da Educação David Justino, colaborador de Godinho ao longo de mais de três décadas, atribui ao facto de este ter sido "um homem de carácter" e "um exemplo de ética republicana", alguém que "não tolerava desvios cívicos". Manuel Loff, um historiador da nova geração que vê em Godinho "o primeiro historiador moderno português", sugere, como ilustração caricatural da sua proverbial intransigência, que este "era do género de ler um livro e dizer ao autor: "Você é capaz de citar fulano? Nunca mais falo consigo"".
Com uma obra vastíssima e multifacetada, e na qual continuou a trabalhar quase até à sua última semana de vida, marcou de forma muito particular a historiografia da expansão portuguesa nos séculos XV e XVI, um tópico que começa a investigar ainda antes de partir para França e acerca do qual publicou diversos estudos, coroados pela monumental obra em vários volumes intitulada Os Descobrimentos e a Economia Mundial, desenvolvimento da sua tese de doutoramento, arguida por Braudel. Revisitando as fontes documentais, estudando as civilizações africanas no período que antecedeu a chegada dos portugueses e cruzando contributos da Geografia, da Economia e da Sociologia, Magalhães Godinho integra os Descobrimentos no pano de fundo da economia mundial, afastando-se do "viés patriótico", para usar a expressão de Manuel Loff, "que estava ainda muito presente em António Sérgio ou Jaime Cortesão".
David Justino crê que Godinho se antecipou mesmo ao seu mestre Braudel no "modo pioneiro como trabalhou sobre a economia mundializada", tomando como objecto "um mundo estruturado pelo fluxo das mercadorias e pelas rotas culturais". Uma abordagem que deixou teorizada numa célebre entrada do Dicionário de História de Portugal de Joel Serrão, na qual desenvolve o conceito, ainda hoje instrumental, de "complexo histórico-geográfico".
Loff destaca uma outra entrada de Godinho para o mesmo dicionário, esta sobre a "sociedade portuguesa", que considera "uma obra-prima" pelo modo como o autor "desmistifica a existência de uma qualquer forma de construção nacional que tenha sido eficaz antes do século XX", distanciando-se da tese de que haveria uma nação portuguesa desde o século XII, cuja identidade teria tido confirmação em episódios como a crise de 1383-1385 ou a restauração de 1640.
Esta sua aversão aos mitos dificilmente poderia deixar de causar algumas reservas ao hexegeta por excelência das mitologias nacionais, Eduardo Lourenço, que, referindo o esforço de Godinho para limpar a História de qualquer metafísica, ajuiza: "A História era a sua metafísica".
Além do seu papel crucial na Universidade Nova, onde foi professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Magalhães Godinho esforçou-se genuinamente por colaborar na edificação do novo país que a Revolução dos Cravos prometia, desempenhando vários cargos públicos. Foi ministro da Educação e Cultura nos II e III Governos provisórios, liderados por Vasco Gonçalves, mas só aguentou cerca de meio ano. Lourenço observa, com malícia, que, nesses tempos do PREC, "terá percebido que a História é algo que a razão pode não ser capaz de apreender totalmente".
Nos anos 80 ainda foi director da Biblioteca Nacional, mas demitiu-se, queixando-se de interferências do poder político, e voltou à universidade. A sua última intervenção pública foi para se opor ao acordo ortográfico. "Foi ele que me contactou a sugerir que se criasse um movimento cívico contra o acordo", conta Vasco Graça-Moura, "e é um dos principais co-redactores da petição que lançámos".
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