sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O dia dos Prodígios

Naquele dia aconteceram três coisas em Vilamaninhos, um lugar em lugar nenhum mas no Algarve: a mula de José Pássaro Volante (Carlos Paulo) fartou-se dele e fugiu, deixando o homem confuso e descoroçoado a arrear na mulher; a camioneta não só parou como dela saiu um mancebo fardado (Diogo Morgado) a perguntar pela casa de Carma Parda (Filomena Cautela), o que sendo, a bem dizer, inédito, ainda assim não se compara ao prodígio, protagonizado por Jesuína Palha (Teresa Faria) e testemunhado pela maralha de aldeões que viram a serpente ganhar asas e voar, ali mesmo, de frente para os seus olhos. Depois, além do tempo, passaram-se coisas. Poucas, o normal e mais quase nada. Um soldado morreu, e o outro, aparecido no seu lugar quando a camioneta voltou a parar na estrada, fanfarrão e generalizadamente estúpido, nem buliu com a melancolia da pobre Carma. Até houve uma revolução. Uns soldados foram lá num instante avisar que o mundo ia mudar, que a sociedade agora era dos descamisados, e partiram depois de mais um ror de palavras invulgares. E eles lá continuaram: a Carma sem conseguir contrariar o destino; a Branca (Lucinda Loureiro) agarrada ao que sempre foi o seu; o Manuel Gertrudes (Rogério Vieira) e as suas saudades da guerra, mais a Jesuína e as suas saudades da bicha que a encantou ao voar; o José Jorge Júnior (José Martins) já de todo passado dos carretos; a mula do Pássaro ainda e sempre a monte. Algo mudou, decerto, mas tudo ficou mais coisa, menos coisa, na mesma. O mundo simbólico de Lídia Jorge, essa caprichosa variedade de realismo mágico tardio e escrita poética, por vezes demasiado arredondada, embora fascinante no seu romance de estreia, não é facilmente perceptível na encenação desta produção do Trindade e da Comuna. Como não é também pressentida a riqueza dramática dos regionalismos adoptados pela autora, que, na peça, parecem sempre esforçados, pouco convictos, corpos estranhos que embaciam a trama.  Ainda assim, embora frustrada, a direcção de Cucha Carvalheiro é um notável trabalho de amor que captura sagazmente a ambiência do vazio existencial português.

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