quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A avó Graça

A avó Graça tinha olhos azuis. Os olhos da minha avó eram azuis.
Azul era o céu da quinta da minha avó. A quinta verde de tecto azul tinha duas casas, casotas e bolotas. Galinhas e pintainhos.E pinhos, muitos pinhos. Cabras e cabritas...e na erva as pedras namoravam as caganitas. Tinha também uma cerejeira e castanheiros...e numa azinheira a minha avó falava-me de cueiros. Tinha feijão, batata e abóbora que rebentavam do chão. E tinha a casota do Noddy, o cão. Tinha ainda o rio, a ponte e o pontão.
A minha avó passava a ponte de madeira que abanava e o pontão que de Inverno o rio levava. Um dia a minha avó caiu da ponte, partiu um braço e desde então, os regressos à quinta diminuiam pelo cansaço.
Portanto, a avó ficou pela casa da aldeia que tinha uma porta rude e feia, pelo quintal com um galinheiro e uma casota para um novo rafeiro...Noddy, de nome igual ao primeiro.
Em casa da minha avó, depois da escola, eu e o meu primo brincávamos e jogávamos à bola. Á bola a minha avó não jogava, mas quando sentados à volta da lareira, a avó brincava e jogos ensinava. E falava, falava, falava... Nós a ouvi-la, continuavamos a brincar: os carros nas carpetes da sala a rolar, a bola na escada a saltar, eu a esconder-me no quarto até o meu primo me encontrar, e ele a esconder-se na sala e a rir ao ouvir-me chegar. A avó assistia a tudo isto sentada ou a trabalhar...por vezes denunciava-me e ajudava o meu primo a me encontrar. Outras vezes ajudava-me a mim a procurar.
A avó cozinhava muito bem. Eu gostava da sopa à hora de jantar. Eu e o meu primo transformávamo-nos em pescadores de legumes. A couve era o tubarão e a massa em forma de concha o berbigão. A brincar comiamos tudo sem dizer que não. Na lareira ao serão,a avó assava castanhas e bacalhau. "Mau, Mau", dizia o meu pai. "Pouco bacalhau que é salgado demais!" Porém, entre silenciosos sinais eu e a avó comunicávamos: "Chiu, amanhã há mais!"
E amanhã havia sempre mais... mais brincadeiras, mais sopa, mais conversas à lareira, mais castanhas e bacalhau, masi, mais e mais... até eu crescer demais para me esconder, até a sopa não se fazer e a brincadeira de pescador desaparecer. Só as conversas continuavam à lareira quando o frio espreitava ou à janela quando chovia, no sofá da sala quando a noite caía e à porta de casa quando o sol convidava.
A minha avó de olhos azuis, a cada dia que passava um cabelo branco ganhava. Até que a imagem dela entre nós (os dela) guardada, é a de uma avó de olhos bonitos e cabelo branco...tão branco como um manto de neve...leve, muito leve. Ela gostava muito da família, especialmente do meu pai. O meu pai era o seu filho preferido. Manuel, o protegido. E ai, se o meu pai não se sentasse com ela a conversar. Aí ela zangava-se e não evitava o constante refilar. Sim. Solitária não porque ela gostava que a fossem visitar. Ela gostava também de perguntar. Muito perguntava e não se esquecia de nada. Absolutamente nada. Curiosa? Sim! E preocupada. Gostava de estar sempre informada.
Ela gostava sobretudo de dar. Sim, ela gostava muito de dar. Eu gostava quando ela me dava bolachas e rebuçados. Os rebuçados e bolachas prendiam-me sempre a convívios passados. Ultimamente comia uma bolacha e maquinalmente encolhia de tamanho. Sentia que de novo conseguia sentar-me no banco rude e tacanho. Ah, o banco!!! Gosto tanto deste banco. Trincava um rebuçado e sentia que cabia no janelo da cozinha...o janelo que a avó fechava ao escurecer. Um dia eu coube naquele janelo.
Carne a minha avó não comia...mas os ovos e o bacalhau davam-lhe muita energia.
O Verão, a Páscoa, o Natal, e o dia 14 de Janeiro eram momentos especiais...com a convivência familiar as rugas eram apenas sinais.
Mas o tempo roubou-lhe a quinta, o Noddy, o galinheiro...e um dia os ovos e o bacalhau deixaram de lhe dar energia. Adoeceu primeiro...janeiro, fevereiro, março abril, maio, junho...Em Junho! Agora alegria só quando os netos via. Alegria em tons de azul, como os olhos dela. A 18 de Setembro partia.
Hoje reside na quinta...sim, creio que sim. Lá, na Samela. Sim, sim...é ela. Lá, depois do rio, da ponte e do pontão.

1 comentário:

lumadian disse...

Ela partiu, mas continua viva dentro de ti e de todos os que gostavam dela. As pessoas boas, as pessoas que nos marcam, que deixam raízes no nosso coração, nunca partem.