"Eclipse" é o trabalho de uma mulher que anda à procura do país que só conheceu aos 21 anos.
"Eu acho que se quiser definir o que faço, sou sobretudo uma intérprete. O importante é eu gostar da história e da melodia. Mas digamos que neste disco arrisquei mais um pouco".
Quando Lura disse isto, já estava finalmente descansada em frente a um prato de picanha. Tinha passado a manhã a correr porque na noite anterior apresentara "Eclipse", novo disco, na Fábrica do Braço de Prata, em Lisboa, e tinha-se deitado mais tarde que o previsto. Chegou meia-hora atrasada à conta do trânsito (não conseguia estacionar o carro). Depois teve de posar para as fotos. Quando parecia que o caminho para a entrevista estava desimpedido, deu-se uma sucessão de telefonemas para o consulado angolano em Lisboa. Estava com problemas na obtenção do visto e na segunda-feira seguinte voava para Luanda para dar dois concertos. (Correu tudo bem e entrou no voo a horas.)
Em Portugal não temos noção disso, mas Lura está habituada a esta velocidade. A sua agenda está mais que carregada e de 2005 a 2006 fez "cerca de 200 concertos" e nos EUA chegou a dar dois por dia. "Às 15 horas dava um concerto para alunos de música das universidades. É uma forma boa de promoção musical: damos um concerto e eles aprendem e analisam o showbizz. Depois, à noite, há o concerto normal". Há fases em que dá seis concertos numa semana.
É esta a bitola pela qual "Eclipse" vai medir-se. Se Lura, hoje, tem o estatuto de futura diva, "Eclipse" tem a obrigação de fazer esse futuro tornar-se presente. Se "hoje em dia" a sua vida obedece "às regras dos mercados dos EUA, da Itália, da Alemanha, da Tasmânia", onde é requisitada, "Eclipse" tem como missão alargar o mapa, conquistar novos territórios. Estabelecê-la definitivamente como uma espécie de rainha. Podemos pensar que a dimensão da tarefa obrigou a grandes planos, mas ela atira de forma desassombrada: "Não tinha uma linha definida para este disco. Aliás, nunca tenho. Vou seguindo um bocado o meu estado de espírito, o que sinto."
Isto sai-lhe depois de uma pausa para dar mais uma garfada na picanha e para pensar, mas sai-lhe de forma espontânea. É mulher de conversa fácil, sem rodeios nem pose de estrela. Ouve as perguntas com atenção, pondera, mas em momento algum parece medir em excesso as palavras. Pode ser uma estrela, mas parece uma rapariga normal. Como é que ela chegou aqui?
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A vida de Lura mudou em 2005, quando o disco desse ano, "Di Korpu Ku Alma", explodiu. Era um disco que impressionava pela frescura, pela força. Olhava para as raízes sem recusar a sua época, tinha tradição, mas era pop, com tremenda energia e revelava uma voz irresistível. Podia ter sido um acaso, uma coisa de uma só vez, mas no ano seguinte veio "M'bem Di Fora", e o sucesso continuou. Mas nada fazia prever isto, especialmente para quem ouviu os seus dois primeiros discos , "Lura", de 1996, e "In Love", de 2003. Ambos estão bastante longe do que faz hoje e que define de forma simples: "Divulgar os ritmos de Cabo-Verde". Na realidade, nem ela imaginava vir a ter o sucesso que tem hoje.
Nasceu em Lisboa, filha de pai nascido na ilha de Santiago, e de mãe nascida na ilha de Santa Antão, "uma ilha com montanhas enormes, a mais montanhosa de Cabo Verde". É onde se faz "o famoso grogue de Cabo Verde" e apesar de não ser uma zona famosa pela sua música, tem, diz, "muita mazurca e muita morna". A primeira vez que foi a Cabo-Verde tinha já 21 anos. "Antes não havia hipóteses de ir, por questões monetárias. Os voos são caros e o sonho da minha mãe era levar-nos a todos ao mesmo tempo. Tivemos de esperar", conta, sem qualquer espécie de tristeza.
O pai de Lura "trabalhava na construção civil" e a mãe "era empregada doméstica". Viviam em Algés e ela começou a contribuir para o orçamento familiar muito cedo. "Desde os 14 anos comecei a trabalhar nas férias. Depois, a partir dos 16 anos, comecei a trabalhar na música, a fazer coros". Fez, entre outros, coros para Bonga, e fez parte do elenco do programa Sábado à Noite, apresentado por João Baião. A música, aos 16 anos, tinha-se tornado opção óbvia: quando estava a crescer havia sempre música em casa, a música que os pais ouviam: "Bana, Cesária, os Cabo Verde Show, que são um dos mais emblemáticos grupos cabo-verdianos de zouk comercial. Os meus pais ouviam tudo em cassetes", recorda, com visível prazer. Mais tarde, em adolescente, tornou-se "fã de zouk e de música americana. Era fã de Whitney Houston".
Tinha 20 anos quando lançou o disco homónimo (radicalmente diferente do que faz hoje). "Na altura do meu primeiro disco não conhecia compositores nenhuns, por isso compunha eu, por pura intuição". Diz isto com absoluta leveza. "Não sabia nada de composição". Não parece muito orgulhosa desse disco.
Tem vindo, como aliás admite, "a compor cada vez menos" de disco para disco. (Curiosamente, quanto menos compõe mais sucesso tem.) "Já pensei: 'Um dia destes vou gravar um disco só de canções minhas', mas depois penso que ia ficar um disco todo muito igual e desisto da ideia". Há uma razão para isto: quando se decidiu "a divulgar os ritmos de Cabo-Verde", preferiu ir directamente à fonte e "buscar os compositores cabo-verdianos". Vai "duas ou três vezes por ano" a Cabo-Verde e uma vez lá fala "com os compositores", vai "a barzinhos ouvi-los cantar", procura "música antiga e nova". E não tem peias em chegar à beira de compositores que não conhece e dizer: "Gostava de ouvir a tua música" ou "Gostava de cantar aquela tua música". Isto, diz, é a única forma de poder fazer o que faz: com liberdade.
"Já que não nasci em Cabo-Verde, tenho a liberdade de fazer a música de todas as ilhas, de explorar os diferentes ritmos". Gosta dos ritmos, claro, mas há mais que isso na sua demanda pela música cabo-verdiana: "Também gosto das histórias, ou gosto sobretudo das histórias. Porque são uma forma de viver uma vida cabo-verdiana que não pude viver. Já que não vivi lá, interpreto as histórias".
Se quer viver uma "cabo-verdianidade" (ou uma "cabo-verdade") através das canções, "Eclipse" é o disco indicado, porque dispara em todas as direcções. Tem uma dezena de compositores creditados (entre eles o grande Mário Lúcyo, e apenas uma canção de Lura), e usa os mais díspares géneros de música cabo-verdiana.
Além disso, estas são canções que têm histórias por trás. Tome-se, por exemplo, "Tabanka", cujo original pertence ao grande Orlando Pantera (já falecido). Não é apenas nome de canção, mas sim de "um ritual que se faz entre Maio e Junho" e que vem "do tempo da escravatura". É uma espécie de Carnaval em que "um velho sai à rua vestido de presidente, outro de membro do Governo, etc", como se os escravos assumissem posições que lhes estavam vedadas. "É uma sátira. A música do Pantera reproduz a música que se fazia: batucada". É talvez a faixa mais estranha de um disco menos imediato do que estaríamos à espera e em que Lura vai ao funk e ao tango, numa faixa, "Canta um tango", que mistura o género argentino com electrónica.
É para isto que as canções servem: para chegar mais perto das raízes.
Entrevista de João Bonifácio
1 comentário:
Já fiquei a conhecer mais uma Cabo-Verdiana de Portugal, ou uma Portuguesa de Cabo-Verde. Fiquei curioso para ouvir algo da sua música.
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