domingo, 6 de abril de 2014

É o amor

É o amor”, diz uma canção brasileira repetidamente ouvida neste filme que João Canijo foi rodar às Caxinas, esse bairro vilacondense onde os homens só não dão em pescadores se tiverem jeito para o futebol (as Caxinas, para quem não sabe, têm um vasto currículo na produção de futebolistas). E onde as mulheres, por inerência, as mais das vezes dão em mulheres de pescadores. "É o Amor", mais do que sobre os homens, é sobre estas mulheres, as que ficam em terra enquanto eles vão para o mar, e em terra garantem que a ida deles para o mar não é em vão. A propósito de Sangue do Meu Sangue, muito se falou de “amor incondicional”; aqui, o amor é a própria condição, sine qua non, que garante o funcionamento duma estrutura social, e o filme de Canijo, basicamente, é sobre isso, ou é um retrato disso.
É o amor, porque, numa mistura de pragmatismo e fatalismo, não pode ser outra coisa. É cumprir “a obrigação”, segundo a terminologia local. Um trabalho, portanto - manter a casa, criar os filhos, tratar do peixe quando chega, gerir as operações em terra. As mulheres como “sangue do sangue” daquela comunidade. Eis, de maneira um pouco mais precisa, o objecto do filme de Canijo. Que encontra - é o seu grande achado - o “sujeito” ideal para o interpretar. Sónia Antunes, mulher de pescador, força da natureza, plenamente convicta da “obrigação”, que interiorizou e sobre a qual disserta e teoriza ao longo do filme inteiro. A sua energia, fundada em doses iguais de candura e determinação, domina o filme, condu-lo, ilumina-o. Mas há uma outra mulher preponderante em É o Amor, uma espécie de agente infiltrada: a actriz Anabela Moreira, uma “regular” de Canijo, que durante semanas (ou meses) habitou e conviveu naquela comunidade. Anabela foi, como disse Canijo, uma espécie de “gazua” para que ele (e com ele, o cinema) conseguisse entrar naquele meio, e garantir ali a cumplicidade feminina necessária para que as outras mulheres, Sónia à cabeça, se revelassem à câmara. Mas foi mais do que isso: foi também, e entramos na zona do filme em que a pura ficção e o puro documento se envolvem numa relação obscura, o contraponto urbano, “sofisticado”, algo sombrio e depressivo, para a autenticidade pragmática e sem estados de alma das mulheres locais. Não é algo sempre bem resolvido, porque a fórmula que Canijo escolheu para sublinhar esse contraponto (cenas “confessionais”, com Anabela, sozinha, registando reflexões para uma câmara video) lembra demasiado aquela lógica de reality show em que o “participante”, temporariamente isolado do grupo, vem “confessar-se” para os espectadores. Mas sobretudo porque as confissões de Anabela, reais ou fictícias (o filme deixa ficar essa ambiguidade), puxam o filme para ela e para uma “angústia de actriz” que vem trazer algum desequilíbrio, algum corte, ao que nos melhores momentos do filme se vislumbra ser o desígnio mais arrojado - mas apenas semi-conseguido - de todo o projecto: apagar de Anabela esse estatuto, de forasteira e de actriz, para deslocar a questão da representação apenas para Sónia, como se fosse ela e não Anabela quem de facto “representa”, sem baixar a guarda, o papel múltiplo da sua “obrigação”.

Sem comentários: