O brasileiro Daniel Rezende lançou-se no desafio pouco facil de adaptar uma obra literaria ao cinema. Sabemos que de todos os livros transformados em filmes, os ultimos sao sempre o elo mais fraco. E neste seu desafio, Daniel Rezende apresenta-nos um romance fragmentado, poético e feito de inumeras vozes que dao vida à solidao, à dor e ao preconceito. Fiel à historia original, o resultado foi obrigatoriamente poético. Eis a historia: Crisóstomo, um pescador solitário sonha ter um filho, e encontra em Camilo, um menino órfão, a oportunidade de construir a sua família. Isaura, uma mulher que foge à sua angustia existencial, é casada com Antonino, um homem que anseia assumir a sua verdadeira orientaçao sexual e ser aceite. Juntos, estas personagens formam um nucleo afetivo que nasce da empatia e do respeito, e afastam-se cada vez mais das relaçoes com origem nos laços sanguíneos, onde domina o preconceito e a discriminaçao. A fotografia atribui ao filme um misticismo entre o real e o fantastico, e a musica a cargo de Fábio Góes, polvilha o enredo de uma suavidade melancólica, adensando o peso emocional dos momentos silenciosos da historia. No entanto, se em certos momentos a poesia sustenta a narrativa com força suficiente, em outros, seria necessário um aprofundamento maior nas relações e nos conflitos internos das personagens. Em resumo, O Filho de Mil Homens é um exercício de delicadeza, imaginação e sensibilidade, onde a essência do livro foi bem capturada, justificando-se assim que, o cinema tambem pode ser palco de poesia ao dar forma a um universo literario tao lirico como o de Valter Hugo Mae.
matabicharcomquedes
sábado, 29 de novembro de 2025
domingo, 16 de novembro de 2025
One Battle After Another
Leonardo DiCaprio é um ex-membro de um grupo revolucionário, pai de uma filha adolescente e em fuga depois da captura da sua companheira. Dicaprio é um pai presente mas näo é propriamente bom: é imaturo, viciado em droga e alcool e muito pouco pedagogo. A fuga de DiCaprio e Infiniti, a filha, perante a pressäo e perseguiçäo do exército pessoal de um sargento fascinado por Taylor , companheira de Dicaprio e mae de Infiniti, e obcecado pela sua inclusão num restrito grupo conspiracionista, vai passando por diversos graus da violência dos dias de hoje: famílias de migrantes enjaulados, crueldade policial e a crença na pureza racial como catalisador de sangue. Não há meios, apenas fins. Também por isto, One Battle After Another é um filme com foco total em sequências de acção, sobretudo perseguição e tiroteio. Um filme denso e de camadas que merecem ser revisitadas. Desde logo a maior qualidade é o facto de poder ser apreciado à superfície como um excitante thriller de ação, uma história clássica de um pai em busca da sua filha. Explore-se um pouco mais fundo, e depressa descobrimos uma avaliaçäo política, social e geracional: falhanços de geraçöes anteriores, promessas que ficaram por cumprir e as revoluções que ficaram por fazer, perante uma América de tendências racistas e cada vez mais declaradas. A dinâmica entre pai e filha apela à continuidade: o passado falhou, o presente està a falhar mas pode ser que o futuro seja promissor e que os filhos vençam.
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
La petite dernière
La petite dernière é um filme baseado no romance de Fatima Daas, publicado há uns cinco anos — uma poderosa autoficção sobre a dificuldade de se ser autentico. Neste caso, uma francesa de ascendência norte-africana, a viver nos subúrbios de Paris, lésbica, muçulmana praticante, que preza Deus, a sua família e a literatura. A realizadora Hafsia Herzi abraça esta obra por completo, e o seu objetivo é imediatamente evidente: a sua heroína merece amar-se. A sua mãe irradia bondade, provavelmente conhecendo o segredo da adolescente sem que seja necessário — ou sequer possível — falar sobre ele. O pai, por sua vez, mantém-se distante, o seu corpo cansado e abandonado na sala de estar, em frente à televisão, num ambiente acolhedor e feminino centrado na cozinha. Os aromas dos cozinhados invadem toda a casa, e as brincadeiras das irmãs mais velhas tambem. Hafsia Herzi demonstra o gosto pela sensualidade e por cenas do quotidiano representadas por atores amadores, ou seja, pessoas convidadas para fazerem de si proprias, como por exemplo, o medico especialista em asma- um verdadeiro pneumologista e o imã intransigente quanto às proibições religiosas. Quem arrasa com tudo à sua frente é nada mais nada menos do que Nadia Melliti, tambem amadora e que dà corpo à personagem principal, e que foi coroada em Cannes com um prémio de representação. Seja a rezar, seja a namoriscar, enfurecida, a chorar, a jogar futebol ou a dançar, ela dá um rosto único e inesquecível a esta comovente história de amadurecimento.
Caramelo
segunda-feira, 10 de novembro de 2025
Anora
Anora é o mais recente filme de Baker e tambem vencedor da Palma de Ouro em Cannes. O filme é uma comédia engraçadíssima sobre um tema obscuro da sociedade: a vida das bailarinas eróticas de Nova York. Uma jovem de 23 anos que mora em Brighton Beach, tradicional bairro da comunidade russa no Brooklyn, ganha a vida fazendo strip-tease num clube nocturno em Manhattan. Um dia, ela conhece Ivan, ou “Vanya”, um beto russo que se encanta por ela e paga para ela passar uma semana com ele. O que Anora não sabe é que Vanya é filho de Nikolai Zakharov, um oligarca russo com negócios sombrios. Com Vanya, Anora descobre um mundo novo de aviões particulares, festas em mansões gigantescas e fins de semana de luxo e ostentação em Las Vegas. A paixão de Vanya por Anora é tão grande que ele a pede em casamento – e é aí que as coisas começam a descambar. A família do oligarca não vai deixar o seu herdeiro casar com uma strip-teaser. O filme é surpreendente. Tudo leva a crer que estaríamos diante de mais um drama corriqueiro sobre uma pobre vítima da sociedade, uma prostituta de “coração de ouro” que tem a oportunidade dourada de mudar de vida. Mas Sean Baker é um diretor inteligente para apelar a moralismos baratos e soluções fáceis e fez uma comédia extraordinària. Uma característica apaixonante de “Anora” é que todos os personagens são interessantes e têm vida própria. Ninguém está ali apenas para cumprir um papel dentro da historia, mas sim, para adicionar humanidade a essa mesma historia. Anora é um caso raro de uma comédia inteligente, que fala de personagens que vivem à margem da sociedade, e que são mostrados sem qualquer moralismo ou julgamento. As pessoas são o que são. E isso é extraordinàrio.
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